Memórias de Verde, Silêncios de Azul

Poemas soltos, por Elsa Braz

sábado, maio 08, 2010

TRÊS OCEANOS NO CORAÇÃO

«-… Contem-me uma história com palavras de mel na boca e eu ficarei no olhar com a música dos búzios.»

Dedicatória



A história que vou contar é dedicada à minha neta Laura Maria. Laurinha, como é mais conhecida.
Uma menina que fez três anos em Janeiro, tem os cabelos da cor do sol, um narizinho arrebitado, olhos castanhos, muito meigos.
Já sabe cantar, pintar com tintas de todas as cores, inventar brincadeiras com plasticina e … dar grandes saltos – salta, salta, salta até chegar à porta do sonho.
Gosta muito de ir à praia, ficar embevecida a olhar o mar, ouvir segredos! …

Transborda de esperança.



1


Naquela tarde cinzenta, a ameaçar chuva, com o vento a soprar cada vez mais forte, a Dona cegonha recebeu no seu telemóvel uma mensagem, um tanto misteriosa.
«- Reunião dos oceanos.»
Os bebés já estavam nas alcofas, enfeitadas com pétalas da cor do sonho e pequenas estrelas da manhã.
Todos os nomes e endereços estavam anotados nas guias de entrega.
Os táxis aéreos cansavam de esperar a ordem de partida.
Enfim, tudo estava como o previsto e funcional.

2

Apesar de saber, muito bem, orientar e fiscalizar as gaivotas que funcionavam como táxis aéreos a Dona Cegonha estava, constantemente, a ser confrontada com um sem número de problemas.
Temporais, calores sufocantes, falta de combustível por causa de algum tornado, atraso na entrega dos bebés pelo anjo da guarda e …agora este acordo dos oceanos.
Quando é que tal aconteceu? O Oceano responsável por cada bebé não tinha já efectuado o respectivo baptismo?
Então?...
Não tinham sido cumpridos todos os protocolos?


3

A Dona Cegonha era uma executiva de primeira classe. A primeira no ramo; não podia aceitar o desrespeito às normas.
E ainda havia o problema dos pais. Coitados! Nunca mais chegava a hora!...
A gaivota mensageira ia passando, dando algumas bicadas na janela. «- Está quase a chegar! Está quase a chegar!»
Eles vinham logo a correr, abriam a porta de par em par, mas …nada. Onde é que se tinha metido a cegonha?
Só viam uma gaivota a voar, lá no alto, no céu das gaivotas!...

4

E tudo por causa de uma mensagem no seu telemóvel, vinda directamente do gabinete do Oceano Pacífico?
Nunca tal acontecera.
Que grande falta de respeito!
A Dona cegonha não era uma cegonha qualquer. Era uma executiva de renome mundial!...

Um tanto aborrecida dirigiu-se ao computador e foi consultando os procedimentos.
«-Ok! Ok! Ok!
Tudo nos conformes.

5


Antes de uma criança nascer estava estabelecido um acordo. Sempre em vigor, desde todos os tempos. Um acordo entre o Céu, a Terra e o Oceano. A Terra deixava as promessas no olhar, o Céu toda a esperança no sorriso e o Oceano derramava no coração uma gota de água, com o sonho das ondas, a grandeza e a força.
Estava tudo assinado.
Porquê, então, aquela mensagem?...


6

Não sabia que fazer.
Tinha mesmo que aguardar. E se tomasse um chá?
Mas o telefone começou a tocar.
«- Está? Está lá?»
Que barulho ensurdecedor. Mesmo igual a um furacão.
«- Está? Está lá?» Quase gritava, sacudindo o telefone.
Depois de alguns minutos de insistência ouviu uma voz que mais parecia vir dos confins do infinito:
“- O Oceano Pacífico vai reunir com o Oceano Atlântico e o Oceano Glaciar Árctico. É uma emergência.»
«- Não estou a perceber! Está? Está lá?»
Mas o grande búzio, apenas, acrescentou:
«Aguardar resultado da reunião.»


7

E esta?
Uma reunião dos oceanos?!...

O que é que os Oceanos têm a ver com a entrega dos bebés?

8

A Dona cegonha estava demasiado inquieta e curiosa.
E, se ligasse para aquela onda vaivém do Ministério?
Sim, não eram amigas desde o tempo do curso de informática? Talvez conseguisse saber alguma coisa.
«- Blá, blá, blá, blá…»
A onda vaivém nunca mais se calava. Contava e recontava todas as fofocas dos mares, todas as paixões dos Oceanos, os sonhos dos búzios, a loucura das ondas! …
Todas as aventuras dos peixes, o encantamento das estrelas-do-mar, a guerra dos tubarões e a espuma cada vez mais rendilhada, só por causa da areia.
Nunca mais se calava a onda vaivém! E a Dona Cegonha, aflita das costas por causa das artroses e daquela ansiedade!...

9

Por fim a grande revelação.
«- Não sabes? Parece impossível! Ninguém te disse?»
A onda vaivém fez um silêncio, comprometedor. Depois acrescentou, em voz de confidência: «- O Oceano Pacífico está numa reunião, no salão nobre, com dois Oceanos – Atlântico e Polar Árctico.»
«- Mas porquê?» Insistiu a Dona Cegonha.
«- Por causa de um bebé que já ia ser entregue.»

10


«-Por causa de um bebé? E cancelaram todas as entregas?
Inadmissível!» Barafustava a Dona cegonha que tinha cumprido todas as formalidades junto dos respectivos mares. E tudo assinado!
A onda vaivém não se calava. Arranjava mil e um argumentos para justificar aquela intervenção dos Oceanos.
«- Tem paciência. Aguarda… aguarda o resultado da reunião. Olha… está outra chamada em linha. Gostei de te ouvir…»


11

A Dona Cegonha, furiosa, pousou o telefone de serviço, ligou a televisão e recostou-se no cadeirão.
Estava a começar o noticiário.

12

E por ali ficou. Quanto tempo?!...

As gaivotas batiam as asas inquietas, os bebés choravam já com fome, os pais imploravam a todos os céus.
A Dona Cegonha sonhava e sorria, sorria e sonhava.
Até que… o barulho estridente do telefone.

13

Trôpega, sonolenta, com a voz entaramelada a Dona Cegonha nem podia acreditar. A reunião acabou.
A reunião acabou?
O grande búzio, directamente do Ministério de todos os mares, numa voz solene, anunciou:
«- Podem começar as entregas.»
«- Mas… o que é que se passou… qual o resultado…»
O grande búzio nem se deu ao trabalho de uma explicação. Com a voz cada vez mais solene, foi repetindo: «- todos os bebés podem ser entregues aos pais. Sem demora».
«- E…» gaguejava a Dona Cegonha.
«- Nova convenção. Foram alterados os estatutos. Aguarde os novos formulários.»


14


E, foi isso que sucedeu.
O fax começou a trabalhar, numa velocidade espantosa, mandando orientações, avisos, ordens.
Os telefones sem pararem de tocar, os correios com entregas de documentação. Uma confusão.
Novos formulários!
Uma nova convenção.
Um novo acordo.

15



Estava determinado que o Oceano derramava, no coração de cada criança que ia nascer, uma gota de água, cheia de sal e de mistério, grandeza e força.
(Entendia-se por Oceano, apenas e só, o Oceano que banhava o país onde viviam os pais do bebé.)
Mas, a partir de agora, este artigo passará a ser alterado.
a) - Outros Oceanos poderão intervir.
b) – Desde que exista um motivo de força maior.


16

A Dona Cegonha depois de muito investigar, muitas noites sem dormir, telefonemas sem conta para todos os mares, apenas se ficou com as orientações que foram dadas e diziam respeito a uma menina que ia ser entregue em S. Diego, na Califórnia.
Além do Oceano Pacífico também o Glaciar Árctico e o Atlântico iam lançar, uma gota de água, no seu coração.

17

Mas porquê? Interrogava-se a Dona Cegonha.
Que motivo pode alterar o que estava estabelecido?
Um motivo de Força Maior?
Maior que todas as ondas e todos os ventos, todos os temporais?
Um motivo que vence todos os protocolos, todos os acordos e decisões?!...

18


Exacto.

O Amor.

O amor dos pais, na Califórnia?
Mas…não estava já incluído? A entrega estava pronta, os pais cansavam de esperar!
Não só.
O Oceano Atlântico e o Oceano glaciar Árctico foram acordados, no melhor do sono, por uma força maior, mais profunda e intransponível que as próprias forças brutas onde se moviam.
A Força do Amor.
Vinha de Portugal e da Finlândia.
Duas famílias.
Avós, tios, primos… sangue de muitas gerações.

19


Com uma exigência. Um ultimato.
A criança que ia nascer tinha que guardar no seu coração a grandeza de três Oceanos. Pacífico, Atlântico, Glaciar Árctico.
.
20


«- Cumpra-se.»
Dizia o novo protocolo. A nova convenção.







Foi assim…
A menina que a Dona Cegonha mandou entregar aos pais, na Califórnia, em S. Diego, é igual a todas as crianças.
Diferente!
Guarda três Oceanos… de Amor… no coração.









Maio 2010
Elsa Braz

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